Poema Bates-me e ameaças-me Agora que levantei minha cabeça esclarecida E gritei: “Basta!” (…) Condenas-me à escuridão eterna Agora que minha alma de África se iluminou E descobriu o ludíbrio E gritei, mil vezes gritei: _Basta!”. Armas-me grades e queres crucificar-me Agora que rasguei a venda cor-de-rosa E gritei: “Basta!” Condenas-me à escuridão eterna Agora que minha alma de África se iluminou E descobriu o ludíbrio.. E gritei, mil vezes gritei: _Basta!_ Ò carrasco de olhos tortos, De dentes afiados de antropófago E brutas mãos de orango: Vem com o teu cassetete e tuas ameaças, Fecha-me em tuas grades e crucifixa-me, Traz teus instrumentos de tortura E amputa-me os membros, um a um… Esvazia-me os olhos e condena-me à escuridão eterna… – que eu, mais do que nunca, Dos limos da alma, Me erguerei lúcida, bramindo contra tudo: Basta! Basta! Basta! - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001. Noémia de Sousa, por (...) OBRA DE NOÉMIA DE SOUSA Poesia :: Sangue negro. [organização e fixação dos textos por Nelson Saúte, Francisco Noa e Fátima Mendonça]. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2001, 174p.; 2ª ed., (incluindo novos poemas, ensaios e fotos da autora). Maputo: editora Marimbique – Conteúdos, 2011. Antologias (participação) :: Antologia da nova poesia moçambicana. [organização Fátima Mendonça e Nelson Saúte]. Maputo: Aemo, 1993. POEMAS ESCOLHIDOS DE NOÉMIA DE SOUSA Abri a porta, companheiros Ai abri-nos a porta, abri-a depressa, companheiros, que cá fora andam o medo, o frio, a fome, e há cacimba, há escuridão e nevoeiro... Somos um exército inteiro, todo um exército numeroso, a pedir-vos compreensão, companheiros! E continua fechada a porta... Nossas mãos negras inteiriçadas, de talhe grosseiro - nossas mãos de desenho rude e ansioso – já cansam de tanto bater em vão.. Aí companheiros, abandonai por momentos a mansidão estagnada do vosso comodismo ordeiro e vinde! Ou então, podeis atirar-nos também, mesmo sem vos moverdes, a chave mágica, que tanto cobiçamos... Até com a humilhação do vosso desdém, nós a aceitaremos. O que importa é não nos deixarem morrer miseráveis e gelados, aqui fora, no noite fria povoada de xipocués... “O que importa é que se abra a porta”. - Noémia de Sousa (1949), em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 39-40. Noémia de Sousa Canção fraterna Irmão negro de voz quente o olhar magoado, diz‑me: Que séculos de escravidão geraram tua voz dolente? Quem pôs o mistério e a dor em cada palavra tua? E a humilde resignação na tua triste canção? Foi ávida? o desespero? o medo? Diz‑me aqui, em segredo, irmão negro. Porque a tua canção é sofrimento e a tua voz sentimento e magia. Há nela a nostalgia da liberdade perdida, a morte das emoções proibidas, e a saudade de tudo que foi teu e já não é. Diz‑me, irmão negro, Quem fez a vida assim... Foi a vida? o desespero? o medo? Mas mesmo encadeado, irmão, que estranho feitiço o teu! A tua voz dolente chorou de dor e saudade, gritou de escravidão e veio murmurar à minha em alma ferida que a tua triste canção dorida não é só tua, irmão de voz de veludo e olhos de luar. Veio, de manso murmurar que a tua canção é minha - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 74-75. Godido Dos longes do meu sertão natal, eu desci à cidade da civilização. Embriaguei-me de pasmo entre os astros suspensos dos postes das ruas e atracção das montras nuas tomou-me a respiração. Todo esse brilho de névoa, ténue e superficial que envolve a capital, me cegou e fez de mim coisa sua. Quando cheguei, trazia no olhar a luz verde dos negros simples e uma dádiva maravilhosa em cada mão. Mas a cidade, a cidade, a cidade! Esmagou com os pneus do seu luxo, sem caridade, meus pés cortados nos trilhos duros do sertão. Encarcerou-me numa neblina quase palpável de ódio e desprezo, e ignorando a luz verde do meu olhar, a maravilhosa oferta (essa estrela, esse tesouro) de cada minha mão aberta, exigiu-me impiedosamente a abdicação da minha qualidade intangível de ser humano! Nas noites frias, sem batuque, sem lua, as estrelas continuaram brilhando, insensíveis, através da cacimba, suspensas dos postes da rua. Minha consolação: Minha Mãe silenciosa oferecendo-me suas costas nuas, mornas como sol de inverno... minha Mãe vencendo a cacimba e a solidão, para me vir belekar, humilde e sofredora, com suas tocantes canções de acalentar! Ah, mas eu não me deixei adormecer! Levantei-me e gritei contra a noite sem lua, sem batuque, sem nada que me falasse da minha África, da sua beleza majestosa e natural, sem uma única gota da sua magia! A luz verde incendiou-se no meu olhar e foi fogueira vermelha na noite fria dos revoltados Ainda grito, porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora, o que fui outrora: Rainha nas costas de minha Mãe! Como tu, meu irmão negro, desorientado e perdido, na cidade cruel... Como tu! Por isso é que este meu canto ingénuo que soa banal, traz no seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão a marca rubra dum selo fraternal, constante e imortal! - Noémia de Sousa (1952), em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 130-131. Negra Gentes estranhas, com seus olhos cheios doutros mundos quiseram cantar teus encantos para elas só de mistérios profundos, de delírios e feitiçarias. Teus encantos profundos de África Mas não puderam. Em seus formais e rendilhados cantos, ausentes de emoção e sinceridade, quedaste-te longínqua, inatingível, virgem de contactos mais fundos. E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual, jarra etrusca, exotismo tropical, demência, atracção, crueldade, animalidade, magia... e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias. Em seus formais cantos rendilhados foste tudo, negra... menos tu. E ainda bem. Ainda bem que nos deixaram a nós, do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma, sofrimento, a glória única e sentida de te cantar com emoção verdadeira e radical, a glória comovida de te cantar, toda amassada, moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE. - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 76-77. Poema da infância distante A Rui Guerra Quando eu nasci na grande casa à beira-mar, era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico. Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul. Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda arrastando as redes pejadas. Na ponte, os gritos dos negros dos botes chamando as mamanas amolecidas de calor, de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas soavam com um ar longínquo, longínquo e suspenso na neblina do silêncio. E nos degraus escaldantes, mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas. Quando eu nasci... - Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me) e o sol brilhava sobre o mar. No meio desta calma fui lançada ao mundo, já com meu estigma. E chorei e gritei – nem sei porquê. Ah, mas pela vida fora, minhas lágrimas secaram ao lume da revolta. E o Sol nunca mais brilhou como nos dias primeiros da minha existência, embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância, constantemente calmo como um pântano, tenha sido quem guiou meus passos adolescentes, - meu estigma também. Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros de infância. Meus companheiros de pescarias por debaixo da ponte, com anzol de alfinete e linha de guita, meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças, companheiros de brincadeiras e correrias pelos matos e praias da Catembe unidos todos na maravilhosa descoberta de um ninho de tutas, na construção de uma armadilha com nembo, na caça aos gala-galas e beija-flores, nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão... - Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada, solta e feliz: meninos negros e mulatos, brancos e indianos, filhos da mainata, do padeiro, do negro do bote, do carpinteiro, vindos da miséria do Guachene ou das casas de madeira dos pescadores, Meninos mimados do posto, meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha - irmanados todos na aventura sempre nova dos assaltos aos cajueiros das machambas, no segredo das maçalas mais doces, companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos” - onde nenhum brado fica sem eco. Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada e boquiaberta de “Karingana wa karingana” das histórias da cocuana do Maputo, em crepúsculos negros e terríveis de tempestades (o vento uivando no telhado de zinco, o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda e casuarinas, gemendo, gemendo, oh inconsolavelmente gemendo, acordando medos estranhos, inexplicáveis das nossas almas cheias de xituculumucumbas desdentadas e reis Massingas virados jiboias...) Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação dia a dia mais insatisfeita. Eles me encheram a infância do sol que brilhou no dia em que nasci. Com a sua camaradagem luminosa, impensada, sua alegria radiante, seu entusiasmo explosivo diante de qualquer papagaio de papel feito asa no céu de um azul tecnicolor, sua lealdade sem código, sempre pronta, - eles encheram minha infância arrapazada de felicidade e aventuras inesquecíveis. Se hoje o sol não brilha como do dia em que nasci, na grande casa, à beira do Índico, não me deixo adormecer na escuridão. Meus companheiros me são seguros guias na minha rota através da vida. Eles me provaram que “fraternidade” não é mera palavra bonita escrita a negro no dicionário da estante: ensinaram-me que “fraternidade” é um sentimento belo, e possível, mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante são tão diferentes. Por isso eu CREIO que um dia o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico. Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul e os pescadores voltarão cantando, navegando sobre a tarde ténue. E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias em noite de tambor e batuque deixará para sempre de me inquietar. Um dia, o sol iluminará a vida. E será como uma nova infância raiando para todos. - Noémia de Sousa (29.04.1950), em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001. Sangue negro Ó minha África misteriosa e natural, minha virgem violentada, minha Mãe! Como eu andava há tanto desterrada, de ti alheada distante e egocêntrica por estas ruas da cidade! engravidadas de estrangeiros Minha Mãe, perdoa! Como se eu pudesse viver assim, desta maneira, eternamente, ignorando a carícia fraternamente morna do teu luar (meu princípio e meu fim)... Como se não existisse para além dos cinemas e dos cafés, a ansiedade dos teus horizontes estranhos, por desvendar... Como se teus matos cacimbados não cantassem em surdina a sua liberdade, as aves mais belas, cujos nomes são mistérios ainda fechados! Como se teus filhos – régias estátuas sem par –, altivos, em bronze talhados, endurecido no lume infernal do teu sol causticante, tropical, como se teus filhos intemeratos, sobretudo lutando, à terra amarrados, como escravos, trabalhando, amando, cantando – meus irmãos não fossem! Ó minha Mãe África, ngoma pagã, escrava sensual, mística, sortílega – perdoa! À tua filha tresvairada, abre-te e perdoa! Que a força da tua seiva vence tudo! E nada mais foi preciso, que o feitiço ímpar dos teus tantãs de guerra chamando, dundundundundun – tãtã – dundundundun – tãtã nada mais que a loucura elementar dos teus batuques bárbaros, terrivelmente belos... para que eu vibrasse para que eu gritasse, para que eu sentisse, funda, no sangue, a tua voz, Mãe! E vencida, reconhecesse os nossos elos... e regressasse à minha origem milenar. Mãe, minha Mãe África das canções escravas ao luar, não posso, não posso repudiar o sangue negro, o sangue bárbaro que me legaste... Porque em mim, em minha alma, em meus nervos, ele é mais forte que tudo, eu vivo, eu sofro, eu rio através dele, Mãe! - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 141-142. Sacrário Ausência do corpo. Amor absoluto. Hosanas de Sol. De chuva. De areia. E andorinhas resvalando as asas no consternado ombro cinzento de uma nuvem. E uma hérbia mantilha teu sacrário velando. - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001 Se me quiseres conhecer Para Antero Se me quiseres conhecer, Estuda com olhos de bem ver Esse pedaço de pau preto Que um desconhecido irmão maconde De mãos inspiradas Talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte. Ah! Essa sou eu: órbitas vazias no desespero de possuir a vida boca rasgada em ferida de angustia, mãos enorme, espalmadas, erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis pelos duros chicotes da escravatura… torturada e magnífica altiva e mística, africa da cabeça aos pés, – Ah, essa sou eu! Se quiseres compreender-me Vem debruçar-te sobre a minha alma de africa, Nos gemidos dos negros no cais Nos batuques frenéticos do muchopes Na rebeldia dos machanganas Na estranha melodia se evolando Duma canção nativa noite dentro E nada mais me perguntes, Se é que me queres conhecer… Que não sou mais que um búzio de carne Onde a revolta de africa congelou Seu grito inchado de esperança. - Noémia de Sousa (25.12.1949), em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001. Te Deum Opressiva a inquietude no carrilar dos bronzes. Libreto de mil cactos em mudo refrão dos desertos. Dobre de sinos em solene Te Deum de graças pela Maria. - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001. Teias da memória Na baça melancolia do tecto bilros de teia bordam solidão enquanto meigos sussurros de sombra no brilhante mutismo do espelho recitam estrofes de poeira. - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001. Um dia Quando este nosso sol ardente de África nos cobrir a todos com a benção do mesmo calor, quero ir contigo, amigo, de mãos dadas, deslumbrados, pelos trilhos abertos da nossa terra estranha, adubada com sangue e suor de séculos... Nas machambas, o ruído repercutido de tractor soará como uma canção de triunfo. Nas matas, as tutas já não serão aves apenas e no centro da vida, nosso irmão negro, quebradas as grilhetas, celebrará seu segundo nascimento num batuque diferente de todos os outros... Uma luz clara e doce se abrirá para todo e nós iremos de mãos dadas, amigo, pelos trilhos verdes de Moçambique. Na noite, não mais soluçarão, estertoradas, canções marimbadas por irmãos naufragados (ô mamanô! Ô tatanô!), Não mais a acusação muda dos olhos precoces de crianças de ventres empinados não mais jaulas erguidas para os inconformistas gritando gritos de sangue através de tudo! Não mais, noite... E nós iremos de mãos dadas, amigo, pelos trilhos abertos de Moçambique, mergulhados no clarão eterno do dia infindável. - Noémia de Sousa, em "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 114-115